#36 - Prescrição. Absolutamente incapaz. Pessoa com Deficiência

Prescrição. Absolutamente incapaz. Pessoa com Deficiência 

 

Afinal de contas, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) corre prescrição contra pessoas absolutamente incapazes? 

 

A jurisprudência em destaque dessa semana objetiva trazer provocações relacionadas ao curso da prescrição contra indivíduos qualificados como incapazes para os atos da vida civil. 

 

É salutar relembrarmos que “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem” (Decreto 20.910/32, art. 1º) 

 

No mesmo sentido, mas com palavras diferentes, dispõe a Lei 8.213/1991, artigo 103, parágrafo único: “Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil”. 

 

Mas essa regra alcança o direito titularizado por pessoa qualificada como incapaz? 

 

Para lançar luz sobre o tema, partiremos de dois julgados emanados do Poder Judiciário, com opiniões opostas. 

 

Começaremos pelo AgInt no Recurso Especial nº 2.057.555-SC, relatado pelo Ministro Herman Benjamin, em que se discutia o direito à restituição de imposto de renda de um indivíduo diagnosticado com Alzheimer. 

 

Na ocasião, reconheceu-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há muito afirmava a impossibilidade da fluência do curso prescricional para indivíduos absolutamente incapazes. No entanto, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), que trouxe mudanças estruturais no Código Civil, artigo 3º, a questão deveria ser revisitada, de modo a adequar-se ao atual panorama legislativo. 

 

Foi partindo dessa premissa que o Ministro Mauro Campbell Marques, consignou que, com o advento de referido Estatuto, os indivíduos qualificados como absolutamente incapazes (aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tinham o necessário discernimento para a prática desses atos; e aqueles que, mesmo por causa transitória, não puderam exprimir sua vontade) passaram a compor o rol de pessoas relativamente incapazes (CC, art. 4º, III), afastando, pois, a causa de impedimento do curso prescricional prevista no Código Civil, artigo 198, inciso I. 

 

Para o Ministro (e seus pares), com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 03/01/2016, a prescrição dos indivíduos – agora – relativamente incapazes volta a transcorrer normalmente. 

 

Mas o grande questionamento que persiste e que, aparentemente não foi respondido pela decisão mencionada anteriormente, é o seguinte: a vulnerabilidade do indivíduo que o protegia contra o curso da prescrição deixou de existir com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência? 

 

Visando fornecer subsídios para a construção de uma resposta, esmiuçaremos um segundo julgado, desta vez, proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, retratando uma perspectiva diversa daquela enfatizada pelo Superior Tribunal de Justiça. 

 

Trata-se do Processo nº 5017423-95.2013.404.7108, de relatoria do Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, em que se discutiu a existência de prescrição do benefício de pensão por morte titularizado por indivíduo qualificado na demanda como sendo absolutamente incapaz

 

Tal como a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça aludida anteriormente, restou ponderada a modificação promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência no artigo 3º do Código Civil. 

 

Porém, caminhando um pouco mais, a Corte enfatizou que a interpretação constitucional do Estatuto não pode propiciar um cenário em que a proteção àqueles que, por questões permanentes ou transitórias, não possuem pleno discernimento para prática dos atos da vida civil, se torna menos protetiva. 

 

Chancelar referida compreensão, segundo entendimento do Tribunal, seria o mesmo que subverter o pressuposto de igualdade que pavimentou a criação do Estatuto. 

 

Assim, a proposta interpretativa realizada pelo Tribunal foi a seguinte: “Os portadores de enfermidade ou doença mental que não têm o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil persistem sendo considerados incapazes, sobretudo no que concerne à manutenção e indisponibilidade (imprescritibilidade) dos seus direitos”.   

 

Longe de apontar uma solução absoluta acerca da temática, é inegável que a entrada em vigor do Estatuto não fez com que indivíduos, antes, qualificados como absolutamente incapazes, passassem a ter o discernimento necessário para reivindicar seus direitos em juízo.


A vulnerabilidade que alicerçava o impedimento do curso da prescrição continua imutável.

 

É bem verdade que o Estatuto representou um importante avanço para a preservação dos direitos das pessoas com deficiência, reposicionando-as no cenário político-econômico brasileiro. Mas as modificações no artigo 3º do Código Civil pelo Legislador visou, em sua essência, afastar a equivocada compreensão de que a condição de PCD, por si só, seria suficiente para limitar a capacidade civil do indivíduo. 

 

Convenhamos: não faria muito sentido uma norma protetiva como o Estatuto acabar diminuindo uma proteção até então garantida por lei e difundida na jurisprudência pátria. 

 

Mas não só faltaria sentido, como também ofenderia o Decreto 6.949/2009 que internalizou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, especialmente o artigo 4º, item 4º, que assim dispõe: “Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau”. 

 

Com base em tais proposições, a resposta à questão inicial que se mostra mais consentânea com o espírito da Constituição é pela manutenção do impedimento do curso prescricional para os indivíduos desprovidos para a prática dos atos da vida civil, mesmo após o advento da 13.146/2015. 

 

Mas o estudioso do Direito deve estar atento a uma questão essencial diante da divergência de posicionamento sobre correr ou não prazo prescricional em face de pessoa incapazes, é primordial demonstrar concretamente (preferencialmente no momento da perícia médica) que o indivíduo, conquanto se enquadre no conceito de pessoa com deficiência, é incapaz de manifestar sua vontade sem o auxílio de terceiros. Em suma, comprovar desde o início que se trata de pessoa incapaz no sentido próprio da palavra é fundamental para resguardar o direito à não aplicação de decadência ou prescrição em face do beneficiário da previdência social. Muito mais no cenário jurídico em que ainda se confundem pessoas com deficiência e pessoas incapazes. 


Um longo caminho ainda parece ser necessário para que os sujeitos da proteção estejam em seus campos de tutela, sob pena de esvaziar-se direitos de pessoas incapazes sob o manto de que não o seriam mais por serem pessoas com deficiência.

 

Nem de longe o Estatuto, ou mesmo a Convenção de Nova York, pretenderam restringir direitos de pessoas incapazes ao alicerçarem direitos das pessoas com deficiência.